Em vez de pessoas, o Grande Hotel, do famoso estilista brasileiro Ronaldo Fraga, hospeda idéias, moda e projetos culturais no centro de Belo Horizonte (MG). O casarão histórico em estilo normando de 1920 assinado pelo arquiteto Alex Rousset e tombado pelo Patrimônio Histórico foi pensado para receber as criações de Ronaldo, distribuídas por 600 m². Hoje o espaço é mais que loja, mais que galeria, mais que um bistrô, mais que um espaço para festas. Tudo acontece por lá.
Fotos: Íris.
Texto: Luiz Cláudio Fernandes.
“No início dos anos 2.000, quando eu assinava louça, papel higiênico, rótulo de vinho, as pessoas entravam na minha loja procurando as peças que elas viam na imprensa. Eu não tinha lá. Então pensei em criar um Grande Hotel e colocar tudo isso lá dentro”, conta Ronaldo. Surgiu, assim, esse espaço vivo, que até hoje estabelece uma relação de afeto com a cidade. É um respiro no caos urbano do bairro Funcionários, onde as pessoas entram para tomar um café, ler um livro, ver uma exposição, escolher uma roupa e sentir o perfume de outros tempos.
“Adoro o cheiro de memória, por isso eu sempre quis que o Grande Hotel fosse em uma casa e que falasse de memória. Somos o terceiro morador dessa casa de 101 anos”, conta Ronaldo. Segundo ele, as obras do atual Grande Hotel duraram dois anos. “Me perguntavam porque eu tava fazendo aquilo e eu respondia que era pela cidade. Uma entrega pela cidade. Nunca parei para colocar na ponta do lápis se o que eu investi ali, eu tive retorno. Provavelmente não”, explica.
“Criar o Grande Hotel foi uma forma de falar de valores que para mim são muito caros. Foi abrir-se à memória, ao cuidado, ao afago, a um olhar romanista sobre todas as coisas, à importância de trazer festas de rua, de abrir a casa”.
Ronaldo Fraga
O décor do hotel chama atenção, com paredes coloridas, móveis e azulejos de época. Ronaldo manteve os pisos de taco de 1920, muito comuns em edificações antigas de Belém, e deixou estar as paredes descascadas. Entre os objetos garimpados aleatoriamente, a mola de colchão virou uma interessante divisória de ambientes e os diferentes modelos de cadeiras foram arrumados propositalmente de forma descombinada. Na área bistrô, uma estante ganhou garrafas de vinho que são fragmentos de uma instalação de Ronaldo em uma exposição sobre o rio São Francisco. Ele desenhou um rótulo para cada cidade, da nascente até a foz. “O restante são objetos que eu fui coletado, utensílios pessoais e encontrados em viagens. Mas como é uma célula viva, a ideia é que essa decoração mude de tempos em tempos”, explica Ronaldo.
Ele interferiu minimamente na arquitetura da casa. “O Alex Rousset me perguntou se eu ia deixar o bistrô no meio da casa e eu falei que ele ia acontecer onde sempre aconteceu, no lugar onde sempre funcionou a cozinha do lugar. Eu disse a ele que as pessoas iam atravessar o coração da casa, que é a cozinha, que é o lugar para se comer, para se encontrar”, recorda Ronaldo.
Os famosos saraus, que Ronaldo chama de Cabaré do Grande Hotel, estão suspensos por causa da pandemia, mas já receberam grandes nomes como Chico César, Cida Moreira e Lívia Nestrovski. A casa é toda desmontada, a roupa desaparece, e vira um cabaré. “Isso faz parte do projeto em que eu queria que o lugar fosse muito mais que uma loja de roupa”, explica.
Em todos os seus trabalhos Ronaldo Fraga costura de forma interessante o diálogo entre moda, design, arte, arquitetura, gastronomia e cultura em geral. “Os vetores que queiram existir ou permanecer existindo têm de fazer diálogos com outras frentes. A moda não deve ocupar um lugar ensimesmado, ela tem de oficializar um diálogo com a história, a memória, a ciência e a tecnologia”, avalia. “Em uma época colocaram a moda no lugar dos frivolités, mas ela é muito mais. Foi aí que eu construí a minha narrativa de moda, que eu me interessei pela moda como um manifesto político, como um instrumento de reafirmação cultural, e o Grande Hotel é a cara disso. Na verdade, qualquer projeto em que eu me envolva vai ter essa espinha dorsal”, conta.
Ronaldo Fraga
Ronaldo Fraga é um estilista brasileiro que, além da marca própria, desenvolve projetos de aculturação de design e geração de renda em todo o Brasil. Ele acumula importantes prêmios, entre eles dois do Design Museum de Londres como um dos sete estilistas mais inovadores do mundo, um pela coleção da China e outro pela coleção da Carne Seca, desenvolvida no semiárido do Nordeste. Outros prêmios são ‘O Globo’, ‘Trip Transformadores’ e ‘Comenda da Ordem do Mérito do Ministério da Cultura’, quando a moda ainda nem era entendida como cultura. “Até hoje a ficha não caiu. A vida tem sido bem generosa comigo”, avalia.
Quando voltou de Londres para o Brasil, Ronaldo resistiu a todos os chamados para morar em São Paulo e decidiu continuar em Belo Horizonte. Hoje ele mora em um apartamento de 1957 modernista no centro de BH. “Esse cheiro da memória sobre a sobreposição dos tempos é algo que me alimenta bastante. Da minha janela vejo as diversas camadas que essa cidade já teve. À frente está o prédio da imprensa oficial, de 1910, mais abaixo, à esquina, o que sobrou de um sobrado de 1920, e logo depois construções dos anos 30, 40, 60, 70”, diz. Antes ele morou 14 anos com esposa e filhos em uma bela casa de 1930 no estilo ardecor, no bairro Floresta. A casa ainda pertence à família, mas está alugada.
“O Brasil sempre foi e será a minha grande fonte de inspiração. A nossa mestiçagem é a nossa fonte inesgotável de inspiração, inventividade e criatividade. Uma vez, Lina Bo Bardi, italiana que escolheu o Brasil para morar, disse que sonhava com o dia em que o talher para se comer, as cadeiras para se sentar, as casas para se morar e as roupas para se vestir desenhadas por brasileiros trouxessem a grandiosidade da cultura desse país. É o que eu faço e é o que você vê ali nos fragmentos, de um pequeno objeto até as roupas expostas num Grande Hotel”.
“Morro de saudade do Pará. Já fui a Santarém, Alter do Chão, e Tucumã, mas Belém é um país. Sou apaixonado, morro de saudades, um lugar onde o que se come termina naquilo que se bebe, na forma que se dança, na música que se escuta e na morosidade das pessoas desse lugar. Um lugar onde se tem a história viva, mas também se tem a história contemporânea. Uma cidade imagéticamente ric, par aonde quero viajar passada a pandemia e chupitar, como disse Mário de Andrade, um sorvete de cupuaçu na praça do Teatro da Paz. Inclusive, a segunda vez que eu desenhei uma ópera foi em um dos últimos espetáculos do Festival de Ópera do teatro, com Paulo Chaves”.
O novo projeto de Ronaldo Fraga é um ateliê aberto no Mercado Novo, em BH, lugar que ele considera o mais cosmopolita da cidade.